Luiz Alexandre Souza Ventura*
“O entendimento sobre a saúde da mulher ainda é centralizado na questão biológica, na sua função reprodutora, o que está nítido quando avaliamos as políticas públicas voltadas às mulheres”, diz a psicóloga Vitória Bernardes, integrante do Conselho Nacional de Saúde (CNS) – representante da associação Amigos Múltiplos pela Esclerosa (AME) – e que faz parte do coletivo feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência.
“A garantia de direitos sexuais, por exemplo, tem pouco destaque. E a garantia de direitos reprodutivos também é negligenciada. Recentemente, o Ministério da Saúde publicou uma portaria para retirar o termo ‘violência obstétrica’ das discussões, como se isso fosse suficiente para acabar com as práticas que levam à violência obstétrica”, comenta Vitória.
A psicóloga afirma que as discussões sobre a saúde ampla da mulher se arrastam desde a década de 1980, quando havia um debate sobre esterilização compulsória da mulher.
“Hoje, se uma mulher preenche os critérios para fazer laqueadura, por exemplo, ela precisa da autorização do marido. A discussão não está ligada somente à decisão da mulher de não ter filhos e ao uso de métodos contraceptivos, como camisinha, DIU ou remédios, que não tem 100% de eficácia. Ainda é uma opressão ao direito de escolha. Há um cenário muito conservador, mesmo com a garantia em lei do aborto em casos de estupro, anencefalia ou risco à vida da mãe”, diz.
Para saber mais sobre as políticas de saúde da mulher defendidas pelo Ministério da Saúde, clique aqui (http://portalms.saude.gov.br/saude-para-voce/saude-da-mulher).
SAÚDE DA MULHER COM DEFICIÊNCIA
No caso da mulher com deficiência, Vitória Bernardes ressalta que, mesmo quando a gestação não representa risco a essa mulher, é muito comum a indicação do aborto por médicos, porque o corpo da mulher com deficiência e suas limitações não são considerados aptos a cuidar de uma vida.
“Nesse sentido, a questão do gênero está muito presente, porque uma mulher que precisa de apoio, de suporte, algo que todas precisam nesse momento, não é considerada apta e, por isso, o aborto e aceitável. Nunca é uma questão de garantia de direitos, mas pela tutela do corpo dessa mulher por outra pessoa, que assume as decisões por ela. Nossa dignidade, garantida na Constituição, é frequentemente questionada. Esse corpo não é entendido como capaz para reprodução, e eu não concordo que a nossa função na vida está restrita a essa finalidade. Quando questionamos o Ministério da Saúde sobre quais são as políticas públicas para mulheres com deficiência, a resposta costuma vir à indicação de recursos de acessibilidade, sem referência a todos os outros direitos”, alerta.
Sobre as laqueaduras, Vitória lembra que, embora haja entendimento de que o procedimento obrigatório é inadmissível, as mulheres com deficiência são frequentemente esterilizadas. “É uma questão de eugenia, uma discussão sobre os corpos, atravessadas no debate sobre gênero”, defende a psicóloga.
Para a integrante do coletivo feminista Helen Keller, o debate sobre saúde da mulher ainda é voltado à idade reprodutiva. “Mesmo quando há ações de prevenção a doenças, inclusive câncer, a visão é limitada ao corpo e ignora as fundamentações de gênero que afetam o adoecimento. É necessário muito avanço”.
Vitória destaca a relação direta entre capacitismo e machismo, que joga a mulher na invisibilidade e impede a construção de políticas públicas mais abrangentes, com participação efetiva de mulheres para determinar como essas políticas devem funcionar.
POLÍTICAS PÚBLICAS E A SEGURANÇA DA MULHER
“É importante frisar que a Lei Maria da Penha surgiu da experiência de uma mulher que sofreu violência e se tornou uma pessoa com deficiência por causa dessa violência. E mesmo após se tornar uma mulher com deficiência, foi atacada novamente, em uma tentativa de feminicídio dentro de casa”, diz Vitória Bernardes.
Segundo ela, falta de tratamento adequado e acesso a medicamentos, além da negligência com alimentação de qualidade. “O conhecimento sobre o que é uma deficiência precisa ser ampliado, para compreensão dessa ‘marca’ social, que está além da diversidade e destaca uma desigualdade”, reflete.
Para a psicóloga, gênero é um fator de vulnerabilidade das mulheres com deficiência e, por isso, ainda são mais privadas de acesso à saúde, que é um direito e não um bem de consumo obtido somente por quem tem condições de pagar.
LEGISLAÇÃO E A SUPRESSÃO DE DIREITOS
Há ameaças de retrocesso até por meio do legislativo, como por exemplo a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n° 29, de 2015, que criminaliza o aborto – inclusive quando está garantido por lei -, Projeto de Lei (PL) nº 478, de 2007 – chamado de e o Estatuto do Nascituro, que proíbe a pesquisa com células tronco embrionárias.
“Isso afeta até os tratamentos. Existem condições degeneratias raras que precisam de pesquisas com células tronco e isso é ameaçado por essas legislações”, comenta a integrante do Conselho Nacional de Saúde.
“Sendo assim, além da sobrevivência da mulher com deficiência, existe a penalização da mulher, por ser mulher. Não há, por exemplo, políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher. E ainda existem a criminalização do aborto legal, como ocorreu com a proposta do ‘b0lsa estupro’, que pagaria um salário para mães violentadas que não abortarem, ou seja, não é uma escolha, mas uma imposição”, completa a especialista.
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Segundo dados da Organização Panamericana de Saúde (OPAS), que faz parte da Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada três mulheres (35%) em todo o mundo sofreram violência física e/ou sexual por parte do parceiro ou de terceiros durante a vida. Além disso, a maior parte dos casos é de violência infligida por parceiros.
Em todo o mundo, quase um terço (30%) das mulheres que estiveram em um relacionamento relatam ter sofrido alguma forma de violência física e/ou sexual na vida por parte de seu parceiro, informa a OPAS.
MORTALIDADE MATERNA
De acordo com a Organização, todos os dias, aproximadamente 830 mulheres morrem por causas evitáveis relacionadas à gestação e ao parto no mundo, sendo que 99% de todas as mortes maternas ocorrem em países em desenvolvimento.
A mortalidade materna, diz a OPAS, é maior entre mulheres que vivem em áreas rurais e comunidades mais pobres. As mulheres jovens e adolescentes, em comparação com outras mulheres, enfrentam maior risco de complicações e morte como resultado da gravidez.
Por isso, defende a Organização Panamericana de Saúde, cuidados antes, durante e após o parto podem salvar a vida de mulheres e recém-nascidos. Entre 1990 e 2015, a mortalidade materna no mundo caiu cerca de 44%. Entre 2016 e 2030, como parte dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a meta é reduzir a taxa global de mortalidade materna para menos de 70 por cada 100 mil nascidos vivos.
*Luiz Alexandre Souza Ventura é jornalista colaborador da CDD.